sábado, 19 de abril de 2014

DESMILITARIZAÇÃO DAS POLÍCIAS, UM DEBATE INADIÁVEL

POLÍCIA DE CHOQUE
A mudança no modelo de segurança pública no Brasil é um debate inadiável. O Estado democrático não pode promover brutalidade e repressão. - Artigo publicado originalmente pela Revista Fórum, que reacende o debate histórico dos movimentos sociais sobre a desmilitarização das Polícias no Brasil.

A  Polícia Militar brasileira é um modelo anacrônico de segurança pública que favorece abordagens policiais violentas, com desrespeito aos direitos fundamentais do cidadão

Uma das heranças mais malditas que a ditadura militar nos deixou é a dificuldade que os brasileiros têm de distinguir entre as funções das nossas Forças de Segurança (polícias) e as das nossas Forças Armadas (exército, marinha, aeronáutica). A diferença é muito simples: as Forças de Segurança garantem a segurança interna do Estado, enquanto as Forças Armadas garantem a segurança externa. Polícias reprimem criminosos e forças armadas combatem exércitos estrangeiros nos casos de guerra.

Diante das desmensuradas diferenças de funções existentes entre as Forças de Segurança e as Forças Armadas, é natural que seus membros recebam treinamento completamente diferente. Os integrantes das Forças Armadas são treinados para enfrentar um inimigo externo em casos de guerra. Nessas circunstâncias, tudo que se espera dos militares é que matem os inimigos e protejam o território nacional. Na guerra, os prisioneiros são uma exceção e a morte é a regra.

As polícias, por outro lado, só deveriam matar nos casos extremos de legítima defesa própria ou de terceiro. Seu treinamento não é para combater um inimigo, mas para neutralizar ações criminosas praticadas por cidadãos brasileiros (ou por estrangeiros que estejam por aqui), que deverão ser julgados por um poder próprio da República: o Judiciário. Em suma: enquanto os exércitos são treinados para matar o inimigo, polícias são treinadas para prender cidadãos. Diferença nada sutil, mas que precisa sempre ser lembrada, pois muitas vezes é esquecida ou simplesmente ignorada, como na intervenção no Complexo do Alemão na cidade do Rio de Janeiro ou em tantas outras operações na qual o exército tem sido convocado para combater civis brasileiros.

O militarismo se justifica pelas circunstâncias extremas de uma guerra, quando a disciplina e a hierarquia militares são essenciais para manter a coesão da tropa. O foco do treinamento militar é centrado na obediência e na submissão, pois só com estas se convence um ser humano a enfrentar um exército inimigo, mesmo em circunstâncias adversas, sem abandonar o campo de batalha. Os recrutas são submetidos a constrangimentos e humilhações que acabam por destituí-los de seus próprios direitos fundamentais. E se o treinamento militar é capaz de convencer um soldado a se deixar tratar como um objeto na mão de seu comandante, é natural também que esse soldado trate seus inimigos como objetos cujas vidas podem ser sacrificadas impunemente em nome da sua bandeira.

A sociedade reclama do tratamento brutal da polícia, mas insiste em dar treinamento militar aos policiais, reforçando neles, a todo momento, os valores de disciplina e hierarquia, quando deveria ensiná-los a importância do respeito ao Direito e à cidadania. Se um policial militar foi condicionado a respeitar seus superiores sem contestá-los, como exigir dele que não prenda por “desacato à autoridade” um civil que “ousou” exigir seus direitos durante uma abordagem policial? Se queremos uma polícia que trate suspeitos e criminosos como cidadãos, é preciso que o policial também seja treinado e tratado como civil (que, ao pé da letra, significa justamente ser cidadão).

O treinamento militarizado da polícia brasileira se reflete em seu número de homicídios. A Polícia Militar de São Paulo mata quase nove vezes mais do que todas as polícias dos EUA, que são formadas exclusivamente por civis. Segundo levantamento do jornal Folha de S. Paulo divulgado em julho deste ano, “de 2006 a 2010, 2.262 pessoas foram mortas após supostos confrontos com PMs paulistas. Nos EUA, no mesmo período, conforme dados do FBI, foram 1.963 ‘homicídios justificados’, o equivalente às resistências seguidas de morte registradas no estado de São Paulo”.Neste estado, são 5,51 mortos pela polícia a cada 100 mil habitantes, enquanto o índice dos EUA é de 0,63 . Uma diferença bastante significativa, mas que, obviamente, não pode ser explicada exclusivamente pela militarização da nossa polícia. Não obstante outros fatores que precisam ser levados em conta, é certo, porém, que o treinamento e a filosofia militar da PM brasileira são responsáveis por boa parte desses homicídios.

Em protesto, manifestantes pedem desmilitarização
Nossa Polícia Militar é uma distorção dos principais modelos de polícia do mundo. Muitos países europeus possuem gendarmarias, que são forças militares com funções de polícia no âmbito da população civil, como a Gendarmerie Nationale na França, os Carabinieri na Itália, a Guardia Civil na Espanha e a Guarda Nacional Republicana em Portugal. As gendarmarias, porém, são bem diferentes da nossa Polícia Militar, a começar pelo fato de serem nacionais, e não estaduais. Em geral, as atribuições de policiamento das gendarmarias europeias se restringem a áreas rurais, cabendo às polícias civis o policiamento, tanto ostensivo como investigativo, das áreas urbanas, o que restringe bastante o âmbito de atuação dos militares. As gendarmarias europeias também são polícias de ciclo completo, isto é, realizam não só o policiamento ostensivo, mas também são responsáveis pela investigação policial.

No Brasil, a Constituição da República estabeleceu no seu artigo 144 uma excêntrica divisão de tarefas, na qual cabe à Polícia Militar realizar o policiamento ostensivo, enquanto resta à Polícia Civil a investigação policial. Esta existência de duas polícias, por óbvio, não só aumenta em muito os custos para os cofres públicos que precisam manter uma dupla infraestrutura policial, mas também cria uma rivalidade desnecessária entre os colegas policiais que seguem duas carreiras completamente distintas. O jovem que deseja se tornar policial hoje precisa optar de antemão entre seguir a carreira de policial ostensivo (militar) ou investigativo (civil), criando um abismo entre cargos que seriam visivelmente de uma mesma carreira.

Nos EUA, na Inglaterra e em outros países que adotam o sistema anglo-saxão, as polícias são compostas exclusivamente por civis e são de ciclo completo, isto é, o policial ingressa na carreira para realizar funções de policiamento ostensivo e, com o passar do tempo, pode optar pela progressão para os setores de investigação na mesma polícia. Para que se tenha uma ideia de como esse sistema funciona, um policial no Departamento de Polícia de Nova York (NYPD) ingressa na carreira como agente policial (police officer) para exercer atividades de polícia ostensiva (uniformizado), tais como responder chamadas, patrulhar, perseguir criminosos etc. Depois de alguns anos, esse agente policial pode postular sua progressão na carreira para o cargo de detetive (detective) no qual passará a exercer funções investigativas e não mais usará uniformes. A carreira segue com os cargos de sargento (sergeant), que chefia outros policiais; de tenente (lieutenant), que coordena os sargentos; e de capitão (captain), que comanda o que chamaríamos de delegacia.

Apesar do que a semelhança dos nomes poderia sugerir, não se trata de patentes, mas de cargos, pois todos são funcionários públicos civis. Cada policial está subordinado apenas a seus superiores hierárquicos em linha direta, assim como um escrivão judicial brasileiro está subordinado ao juiz com o qual trabalha. Um agente policial estadunidense não está subordinado de qualquer forma às ordens de um capitão de uma unidade policial que não é a sua, assim como o escrivão judicial brasileiro não deve qualquer obediência a juízes de outras varas. Para se ter uma ideia da importância dessa diferença, basta imaginar a situação difícil em que fica um policial militar brasileiro ao parar, em uma blitz, um capitão a quem, para início de conversa, tem o dever de prestar continência. A hierarquia militar acaba funcionando, em casos como esse, como uma blindagem para os oficiais, em um nítido prejuízo para o princípio republicano da igualdade de tratamento nos serviços públicos.

As vantagens de uma polícia exclusivamente civil são muitas e, se somadas, a unificação das polícias ostensiva e investigativa em uma única corporação de ciclo completo só traz benefícios para os policiais, em termos de uma carreira mais atrativa, e aos cidadãos, com um policiamento único e mais funcional.

No Brasil, tramita no Senado da República a Proposta de Emenda à Constituição nº 102/2011, de autoria do senador Blairo Maggi (PR/MT), que, se aprovada, permitirá aos estados unificarem suas polícias em uma única corporação civil de âmbito estadual, representando um avanço imensurável na política de segurança pública brasileira, além de uma melhor aplicação do dinheiro público, que não mais terá que sustentar duas infraestruturas policiais distintas e, algumas vezes, até mesmo concorrentes.

A unificação das polícias também possibilitaria uma carreira policial bem mais racional do que a que temos hoje. O policiamento ostensivo é bastante desgastante e é comum que, à medida que o policial militar envelhece, ele acabe sendo designado para atividades que exijam menor vigor físico. Como atualmente existem duas polícias e, portanto, duas carreiras policiais distintas, os policiais militares acabam sendo designados para tarefas internas, típicas de auxiliar administrativo, mas permanecem recebendo a mesma remuneração de seus colegas que arriscam suas vidas nas ruas. Com a unificação, ocorreria o que acontece na maioria das polícias do mundo: ele seria promovido para o cargo de detetive e sua experiência como policial ostensivo seria muito bem aproveitada na fase de investigação. Para suprir os cargos administrativos meramente burocráticos, bastaria fazer concursos para auxiliares administrativos que requerem vocação, habilidades e treinamento bem mais simples daqueles exigidos de um policial.

Por outro lado, os policiais civis que realizam o trabalho de investigação atualmente são recrutados por meio de concursos públicos e começam a exercer suas atividades investigativas sem nunca terem tido experiência policial nas ruas. Com a unificação da polícia, o ingresso se daria sempre para o cargo de policiamento ostensivo, no qual o policial ganharia experiência e só então poderia ascender na carreira para os cargos de investigação. Um modelo que privilegia a experiência prática, e não o conhecimento técnico normalmente exigido em provas de concursos.

Finalmente, a unificação das polícias acabaria também com os julgamentos de policiais pela Justiça Militar. Pelo atual sistema, os crimes praticados por policiais militares em serviço (exceto crimes dolosos contra a vida de civis) são julgados não pelo juiz criminal comum, mas pela Justiça Militar, em uma clara violação do princípio republicano da isonomia. É como se as universidades federais tivessem uma Justiça Universitária para julgar os crimes praticados por professores durante as aulas; ou as indústrias tivessem uma Justiça Industrial para julgar os crimes praticados por metalúrgicos em serviço. Uma espécie de universo paralelo jurídico que só se explica pela força política dos militares quando da promulgação da Constituição de 1988.

Desmilitarizar e unificar as polícias estaduais brasileiras é uma necessidade urgente para que haja avanços reais na nossa política de segurança pública. Vê-se muito destaque na mídia para projetos legislativos que demagogicamente propõem o aumento de penas e outras alterações nos nossos códigos Penal e de Processo Penal como panaceia para o problema da criminalidade. Muito pouco se vê, porém, quanto a propostas que visem a repensar a polícia brasileira.

De nada adianta mudar a lei penal e processual penal se não se alterar a cultura militarista dos seus principais aplicadores. Treinem a polícia como militares e eles tratarão todo e qualquer suspeito como um militar inimigo. Treinem a polícia como cidadãos e eles reconhecerão o suspeito não como “o outro”, mas como alguém com os seus mesmos direitos e deveres. Nossa polícia só será verdadeiramente cidadã quando reconhecer e tratar seus próprios policiais como civis dotados dos mesmos direitos e deveres do povo para o qual trabalha.

A origem da militarização:

Dalmo Dallari, professor aposentado de Direito da Universidade de São Paulo (USP), também é autor do livro O pequeno exército paulista (Editora Perspectiva, 1977), no qual fala a respeito da história da Polícia Militar de São Paulo.  “O decreto número 1 do governo provisório, à época da proclamação da República, dizia que as províncias passariam a se chamar estados, que eram, na verdade, subdivisões administrativas. Entretanto, em muitas dessas províncias havia grupos poderosos, grandes famílias e oligarquias muito ricas que queriam agir com absoluta independência, liberdade, sem interferência do governo central. Temendo que fosse cerceada essa liberdade, foi criado um organismo de policiamento militar que tinha esta dubiedade: ao mesmo tempo era militar e policial, quando, de fato, tratam-se de tarefas essencialmente diferentes”, analisa.

Nesse cenário, em 1906 vem a São Paulo a chamada Missão Francesa, que tinha como objetivo preparar a polícia paulista como se fosse uma tropa militar. A preocupação dos oligarcas locais tinha reflexos evidentes nos ditames da classe política. “Havia uma disputa  pela afirmação da independência dos estados, e existe uma correspondência de Campos Salles, que foi governador de São Paulo, para Bernardino de Campos, seu sucessor, recomendando que houvesse uma organização armada, bem forte, que seria um casco defensivo contra qualquer ofensa”, conta Dallari.

No artigo “Militarização da segurança pública no Brasil: respostas recentes a um problema antigo”, publicado na Revista do Departamento de Ciência Política da Universidade Nacional de Medellín, o professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Luís Antônio Francisco de Souza traça um histórico sobre como a polícia foi militarizada no país e também dá detalhes de como a vinda da Missão Francesa estimulou na Força Pública local o treinamento militar, a hierarquia, a disciplina, os exercícios, o espírito de corpo e a organização interna. “Nesse momento, e até o final do primeiro período republicano, começou a se formar um verdadeiro exército paulista, com funções policiais em todo o estado, funcionando como auxiliar das autoridades policiais civis, bem como pronto para intervir nas situações de comoção pública, revoltas políticas, movimento grevistas etc.”, relata.

De acordo com Souza, na capital do estado, a Força Pública atuava no policiamento, mas também na gestão urbana de conflitos, além de greves e mobilizações operárias. Em sua estrutura interna, havia divisões como infantaria, cavalaria, bombeiros, companhias motorizadas e companhia de aviação, tipificando-se uma estrutura de formação e de ensino militarizados. Em 1907, além dos quartéis da Força Pública, foram criadas companhias uniformizadas especializadas em policiamento urbano como a Guarda Cívica da Capital e, em 1910, a Guarda Cívica do Interior. Em 1924, as guardas cívicas foram transformadas em Guardas Civis, corporação que permaneceu inalterada em sua estrutura até 1969, quando a ditadura militar extinguiu a guarda e fundiu sua estrutura, incorporando seus homens à Força Pública. É com base nessa fusão que surge a Polícia Militar.

“A Polícia Militar passa a ter competência exclusiva pelo policiamento ostensivo, sendo vedada a criação de qualquer outra polícia fardada pelos estados. A partir deste momento, de forma explícita, a Polícia Militar será considerada efetivo de reserva do Exército e terá subordinação direta a um general da ativa, posto que o posto máximo da hierarquia da PM será de coronel, posição que dá aos policiais o direito de assumir comandos, inclusive o comando-geral da força”, explica Souza. “Com a criação da Polícia Militar, as diferenças entre o policiamento fardado e civil se acirram e o isolamento dos policiais se acentua, já que a doutrina de segurança nacional, um dos pilares institucionais do militarismo brasileiro, preconizará o distanciamento entre cidadania e segurança pública, com restrições importantes entre o contato da ‘família policial militar’ e sociedade mais ampla”, destaca. É nesse período também que são criadas organizações que servirão de linha auxiliar na repressão política do período (mas que atuam até hoje) como a Ronda Ostensiva Tobias de Aguiar (Rota) e o Batalhão de Choque.

“Sempre existiu a convivência das Policias Militares e Civil. O que aconteceu foi que, na ditadura militar brasileira, essa Polícia Militar acabou sendo expandida e a Polícia Civil acabou sendo esvaziada”, sustenta o professor de Direito Penal da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Túlio Vianna. “A Polícia Civil, que antes também fazia o policiamento ostensivo, perdeu essa característica. Quer dizer, a ditadura tirou essa função e a colocou somente para investigar. E a Polícia Militar, que até então era mais aquartelada, não era polícia de rua, saiu do quartel e foi fazer o policiamento ostensivo tal como temos hoje.”

Com a instituição da Assembleia Nacional Constituinte em 1988, surgiu a possibilidade de se alterar uma estrutura policial moldada durante o regime militar, dentre tantas outras mudanças debatidas para se fazer a transição democrática no País. Júlia Leite Valente, em artigo publicado na Revista do Laboratório de Estudos da Violência da Unesp, remonta o  clima em que se deram os debates naquele período. “No contexto da Assembleia Nacional Constituinte, intensificou-se a discussão sobre as Polícias Militares, tendo em vista que sua ligação com o poder no período anterior inviabilizaria sua permanência numa sociedade democrática. Paralela ao debate sobre organização policial, estava a discussão mais ampla sobre segurança pública, que opunha militantes de direitos humanos e grupos conservadores. Aqueles criticavam severamente as instituições herdadas do regime autoritário, em particular a polícia. Estes, contrários aos movimentos de luta por direitos e com forte apoio midiático, trataram de reacender o autoritarismo existente na sociedade, mobilizando sentimentos coletivos de insegurança e atraindo a seu favor opiniões favoráveis a uma intervenção autoritária na ordem pública.”

À época, como lembra Júlia, o tema da violência passou a ter grande relevância, pois a transição coincidiu com um momento de intensificação da criminalidade, que já havia aumentado nos anos 1970, mas que, no início da abertura política, acelerou ainda mais. A taxa de homicídios, de 11,68 por cem mil habitantes em 1980, passou a 22,20 por cem mil em 1990. “Predominava o pensamento de que era necessário intensificar a repressão e a opinião pública se mostrou altamente favorável ao emprego de métodos violentos pela polícia, a instauração da pena de morte ou ao recurso a métodos de justiça ilegal”, salienta.

Não que não tenha havido qualquer avanço nessa área. O reconhecimento da segurança pública como um direito social apontava para uma mudança de modelo, e foi retirado do Exército o controle direto das Polícias Militares, transferindo-o aos governos estaduais. Mas a militarização policial se manteve. “Quando o Brasil redemocratizou, as Forças Armadas ainda tinham um poder político muito grande. Não foi uma redemocratização propriamente de baixo para cima, pelo povo. Foram eles que fizeram a abertura. Estavam com a faca e o queijo na mão ainda”, aponta Túlio Vianna. “Uma das coisas que foi certamente uma imposição deles foi a estrutura policial ser mantida com o modelo no qual a Polícia Militar é dominante. Em número de policiais, existem muito mais militares que civis. Com um detalhe: a Constituição diz que a PM é força auxiliar do Exército. A nossa PM, de certa forma, tem uma subordinação, ainda que não seja direta, ao Exército. O que implica evidentemente força política para os militares das Forças Armadas.”

Desmilitarização: uma bandeira ampla.

“Para nós, a desmilitarização é uma reivindicação que tinha que ter vindo junto com o fim dos registros de ‘resistência seguida de morte’, já está atrasada. Nossa polícia não nos oferece segurança, mas sim insegurança, eles matam nossos filhos descaradamente. Essa instituição carrega os legados e ideologias da época da escravidão, são os mesmos coronéis que caçavam escravos”, acusa Debóra Maria da Silva, fundadora e uma das coordenadoras do movimento Mães de Maio, surgido em consequência do massacre ocorrido em São Paulo entre os dias 12 e 20 de maio de 2006, que vitimou 493 pessoas e cuja maior responsabilidade recai sobre grupos de extermínio que contariam com a participação de agentes do Estado. “A PM viola os direitos humanos dos praças, que são explorados dentro da corporação, então imagina o que eles não fazem nas ruas. Fazem mal aos pobres, negros e jovens das periferias, é uma polícia treinada para matar, e o inimigo, declarado nas aulas práticas deles, nos bancos onde os policiais são treinados, são os negros e periféricos. Eles matam com a certeza da impunidade”, desabafa.

Quando Débora se refere aos praças, toca em um ponto que nem sempre é abordado quando se discute a desmilitarização. Boa parte dos integrantes das PMs no Brasil se posiciona a favor de mudanças no modelo das polícias, como mostra a pesquisa “O que pensam os profissionais da segurança pública, no Brasil”, realizada pelo Ministério da Justiça e coordenada por Luiz Eduardo Soares, Marcos Rolim e Silvia Ramos. Envolvendo a aplicação de 65 mil questionários, o levantamento mostra opiniões distintas de acordo com a posição que o profissional ocupa na corporação. Dos policiais militares que não são oficiais, como soldados, cabos, sargentos e subtenentes, 42,1% preferem que a polícia seja unificada, e que seja civil, enquanto 18,8% dos não oficiais também são favoráveis à unificação, mas com a nova polícia unificada sendo militar. Entre os oficiais, são apenas 15,8% os que se identificam com a proposta de unificação das polícias, com a nova corporação se tornando civil.

“No meio policial, nós temos os praças, que são favoráveis à desmilitarização, e os oficiais, que normalmente são contrários. Só que, pelo militarismo, os praças acabam ficando interditados na sua manifestação de expressão”, observa Túlio Vianna. “O militarismo impõe uma série de restrições, e eles não têm como expressar em público, de uma forma mais ativa e contundente, o desejo deles. Então, quem quer a desmilitarização, que são os praças, não pode se manifestar e o grande público não sabe exatamente o que é isso e por que isso é importante.”

O depoimento de Heronides Mangabeira, cabo da Polícia Militar do Rio Grande do Norte , evidencia os pontos abordados por Vianna. “A pessoa entra na polícia e deixa de lado vários direitos e garantias que tinha porque ela passa a ser, a partir de então, militar”, diz Mangabeira, que também é acadêmico de Direito e pesquisador da área de Segurança Pública. “Por conta disso, somos cerceados de vários direitos como liberdade de pensamento, de expressão e até mesmo de locomoção. Por exemplo, se eu for me dirigir até São Paulo, tenho de pedir ao meu comandante que me libere e, mesmo assim, eu tenho de pegar um documento de deslocamento, para quando chegar em São Paulo procurar uma unidade da Polícia Militar, assinar e comprovar que realmente estive aí”, argumenta.

Mangabeira também afirma que o policial não conta, na sua condição de militar, com outros direitos trabalhistas que afetariam o desempenho profissional e a própria atuação dos agentes. “O militar também sofre por não ter jornada de trabalho digna, por não ter horas extras, adicional de insalubridade, adicional noturno… Coisas que todos os trabalhadores têm e o próprio policial civil ou o rodoviário federal, que trabalham de forma similar ao PM, um serviço preventivo e ostensivo, têm”, compara. “Isso reflete na rua, na sociedade, no serviço de prestação de segurança pública, já que o policial sofre de depressão, estresse…”

Ele também acha inadequada a formação dada aos PMs hoje, algo que dificulta a interação dos agentes com a sociedade. “A formação militar é bastante rígida e o policial vai para a rua com aquela cultura, tratando a sociedade às vezes de forma igualmente dura”, aponta. Túlio Vianna também acredita que o modelo policial hoje prejudica muito os não oficiais, que acabam ficando à mercê de um estrutura pouco flexível e autoritária. “O modelo de militarização trabalha para tornar o policial, ou o militar, um objeto na mão do seu comandante. De forma tal que, se você tiver uma guerra, vai precisar daquele indivíduo trabalhando 24 horas por dia para o Exército. Para repelir a ameaça do inimigo, tem de ter uma obediência muito grande, são situações extremas onde a morte é muito eminente. Então, o militarismo foca em uma dessubjetivação do militar. É a obediência máxima”, argumenta. “A polícia não pode ser assim, é um trabalho como outro qualquer. O sujeito volta para a casa depois do expediente, tem sua vida normal dentro do país dele. Nós não podemos transportar o ponto de vista militar e sua hierarquia para dentro da polícia.”

Outra questão que deve ser tocada em relação à desmilitarização é o papel desempenhado pela Justiça Militar, à qual cabe processar e julgar policiais militares em crimes militares tipificados em lei. Embora em crimes não militares, como os dolosos contra a vida, por exemplo, o agente possa ser julgado na Justiça comum, o papel desempenhado por esse ramo militar tem, de acordo com Vianna, ignorado fatos relevantes e focado mais em questões relativas à manutenção da hierarquia, penalizando quem está na base.

“Claro que se você perguntar a um PM se ele acha que a Justiça Militar é rigorosa, vai falar que sim e argumentar que os números de condenação são muito grandes. Porém o número de oficiais condenados é muito pequeno. Mas é rigorosa com os praças, e não necessariamente por crimes de corrupção por exemplo, às vezes por questões bobas como o sujeito não estar uniformizado ou ter xingado o oficial”, aponta Vianna, que também atenta para uma espécie de mistificação em torno de hierarquias e regramentos inflexíveis, como se a rigidez fosse um fator impeditivo de desvios de conduta ou corrupção. “Hierarquia não acaba e nem diminui corrupção. Na verdade, muitas vezes ela concentra a corrupção em oficiais. Esse argumento é muito ingênuo, se a hierarquia militar resolvesse o problema da corrupção, nossa polícia seria a polícia da Suíça.”

O modelo como está, com duas polícias, cada uma fazendo metade do serviço e com a rivalidade e a competição entre militares e civis, é muito ruim. Esse novo modelo vai conservar a hierarquia e a disciplina, mas não precisa ser militarizada, esse papo está ultrapassado. Precisamos de uma polícia cidadã e próxima, que previna, isso sim é importante, a sociedade está desassistida, esse modelo que aí está não é o melhor. Portanto, é urgente a desmilitarização das Polícias em todo o Brasil.

Para ler mais artigos sobre o tema, sugerimos visitar o site da Revista Fórum.

Nenhum comentário:

Postar um comentário